O caso de Flávia Maynarte e Kim Kataguiri e o uso de processos contra críticas nas redes sociais

Ao acordar certa manhã de abril de 2022, a maquiadora e babá Flávia Maynarte, de 50 anos, ficou apavorada ao descobrir pelos sites de notícia que estava sendo processada por causa de algumas publicações que fez em suas redes sociais. 

“Eu levei um susto muito grande, principalmente por estar sendo processada por um Deputado Federal. Eu, uma pessoa simples, e completamente fora da mídia. Eu não sou uma pessoa famosa, então aquilo me assustou bastante, eu fiquei mais apavorada”, lembra.

O Deputado Federal em questão era Kim Kataguiri (MBL), e os posts de Flávia que deram início à ação comentavam a respeito da participação do parlamentar no Flow Podcast em fevereiro daquele ano. No programa, exibido no Youtube, ao comentar a legalidade da existência de um partido nazista, o deputado afirma: 

“O que eu defendo, que eu acho que o Monark também defenda, é que por mais absurdo, idiota, antidemocrático, bizarro, tosco, que o sujeito defenda… isso deve ser… não deve ser crime. Por quê? Porque a melhor maneira de você reprimir uma ideia antidemocrática, tosca, bizarra, discriminatória, é você dando luz àquela ideia, pra que aquela ideia seja rechaçada socialmente. Socialmente. E, então, socialmente rejeitada. Mas que ela não seja legalmente…” (às 4 horas e 20 minutos de entrevista).

Movida por um sentimento de indignação, Flávia publicou alguns tweets condenando o que considerou uma espécie de defesa do nazismo, praticada pelo deputado federal. E ela não foi a única, a repercussão dos comentários tomou uma proporção tão grande que diversas organizações e figuras relevantes, como Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), também manifestaram seu repúdio às falas.

 

As acusações

Por meio de uma ação de indenização por danos morais com pedido de tutela de urgência, o deputado federal acusou Flávia de ter desferido uma série de ataques caluniosos e ofensas à sua honra, defendendo que houve “tentativas de assassinato de reputação ao associar o Requerente ao nazismo”.

Como forma de reparação, a ação solicita a exclusão das publicações, uma retratação pública a respeito desses comentários e indenização de  quase 50 mil reais.

“Esses pedidos, para mim, foram uma total falta de respeito até com a minha classe social. Fazer um pedido desses para quem trabalha como babá é, no mínimo, desonesto”, desabafa Flávia.

“Nessas hipóteses, os autores, principalmente aqueles com grande poder de influência, pedem essas quantias não exatamente com o objetivo de receber, porque se sabe que o suposto dano causado não foi tão grave assim como sugerem, mas para amedrontar”, explica Lucas Mourão, um dos advogados que atuou na defesa de Flávia.

 Sem recursos financeiros, por meio de seu advogado, Flávia procurou o Instituto Tornavoz, organização sem fins lucrativos que auxilia com o pagamento de honorários advocatícios e dá apoio técnico/estratégico para defesa judicial daqueles que estão sofrendo processos judiciais em virtude do exercício de sua liberdade de expressão.

 

O processo

Após o início da ação, o magistrado responsável pelo processo negou o pedido de tutela de urgência requerido por Kim Kataguiri, alegando que “a urgência alegada não chega a impor que não se possa aguardar a realização da audiência de conciliação”.

Na audiência em questão, em que se busca entrar em acordo a respeito dos pedidos feitos no processo, a proposta oferecida foi de que Flávia pagasse R$5 mil de indenização e se desculpasse publicamente. “Obviamente não foi aceito. Primeiro porque ela não teria esse dinheiro para pagar, segundo porque nós estávamos muito certos do nosso direito e muito convictos de que a ação seria julgada improcedente”, explica Lucas. 

 

A decisão

Dois meses após o início do processo, em junho de 2022, a sentença foi proferida. Nela, os pedidos feitos por Kim Kataguiri foram julgados improcedentes pelo juiz, que apontou que um deputado federal não é uma pessoa comum e sabe que está sujeito a críticas e manifestações contundentes por suas opiniões e ações.

“Entendo que, por mais duras que foram as palavras proferidas pela requerida em suas publicações, agiu assim amparada pela livre manifestação do pensamento, garantida pela Constituição Federal em seu artigo 5o, Inciso IV, sendo um direito fundamental de qualquer cidadão”, disse. 

“Um parlamentar que não consegue conviver com as críticas e comentários depreciativos à sua atuação não está preparado para exercer o seu mandato num país democrático onde as pessoas têm o direito à livre manifestação do pensamento”, complementou.

Após a decisão, o parlamentar interpôs recurso recorrendo da decisão, mas a sentença foi mantida.

 

Liberdade de expressão é direito

“As figuras públicas realmente devem ter um maior grau de tolerância, principalmente para receber críticas. Receber elogios a toda hora é muito fácil e simples. Até eu que não sou uma figura pública recebo muita crítica nas redes sociais, principalmente por causa da minha posição política”, pontua Flávia.

Para ela, esses processos que tentam impedir a livre manifestação do pensamento são um absurdo. E, apesar de tudo o que passou, aponta que essa ação não inibiu de forma alguma o jeito que pretende se expressar daqui pra frente. “A gente tem esse direito de expressar o que pensa”, comenta.

A diretora-executiva do Tornavoz, Charlene Nagae, aponta a importância de apoiar casos como o de Flávia: “considerando a grande comoção pública em torno desse episódio, chama a atenção que um deputado federal tenha processado a Flávia. Isso mostra que qualquer pessoa pode acabar silenciada por um processo judicial. Felizmente o Judiciário negou o pedido indenizatório. Figuras públicas devem suportar críticas, ainda que elas sejam muito duras”.

O caso de Flávia Maynarte e Kim Kataguiri e o uso de processos contra críticas nas redes sociais
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Ao acordar certa manhã de abril de 2022, a maquiadora e babá Flávia Maynarte, de 50 anos, ficou apavorada ao descobrir pelos sites de notícia que estava sendo processada por causa de algumas publicações que fez em suas redes sociais. 

“Eu levei um susto muito grande, principalmente por estar sendo processada por um Deputado Federal. Eu, uma pessoa simples, e completamente fora da mídia. Eu não sou uma pessoa famosa, então aquilo me assustou bastante, eu fiquei mais apavorada”, lembra.

O Deputado Federal em questão era Kim Kataguiri (MBL), e os posts de Flávia que deram início à ação comentavam a respeito da participação do parlamentar no Flow Podcast em fevereiro daquele ano. No programa, exibido no Youtube, ao comentar a legalidade da existência de um partido nazista, o deputado afirma: 

“O que eu defendo, que eu acho que o Monark também defenda, é que por mais absurdo, idiota, antidemocrático, bizarro, tosco, que o sujeito defenda… isso deve ser… não deve ser crime. Por quê? Porque a melhor maneira de você reprimir uma ideia antidemocrática, tosca, bizarra, discriminatória, é você dando luz àquela ideia, pra que aquela ideia seja rechaçada socialmente. Socialmente. E, então, socialmente rejeitada. Mas que ela não seja legalmente…” (às 4 horas e 20 minutos de entrevista).

Movida por um sentimento de indignação, Flávia publicou alguns tweets condenando o que considerou uma espécie de defesa do nazismo, praticada pelo deputado federal. E ela não foi a única, a repercussão dos comentários tomou uma proporção tão grande que diversas organizações e figuras relevantes, como Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), também manifestaram seu repúdio às falas.

 

As acusações

Por meio de uma ação de indenização por danos morais com pedido de tutela de urgência, o deputado federal acusou Flávia de ter desferido uma série de ataques caluniosos e ofensas à sua honra, defendendo que houve “tentativas de assassinato de reputação ao associar o Requerente ao nazismo”.

Como forma de reparação, a ação solicita a exclusão das publicações, uma retratação pública a respeito desses comentários e indenização de  quase 50 mil reais.

“Esses pedidos, para mim, foram uma total falta de respeito até com a minha classe social. Fazer um pedido desses para quem trabalha como babá é, no mínimo, desonesto”, desabafa Flávia.

“Nessas hipóteses, os autores, principalmente aqueles com grande poder de influência, pedem essas quantias não exatamente com o objetivo de receber, porque se sabe que o suposto dano causado não foi tão grave assim como sugerem, mas para amedrontar”, explica Lucas Mourão, um dos advogados que atuou na defesa de Flávia.

 Sem recursos financeiros, por meio de seu advogado, Flávia procurou o Instituto Tornavoz, organização sem fins lucrativos que auxilia com o pagamento de honorários advocatícios e dá apoio técnico/estratégico para defesa judicial daqueles que estão sofrendo processos judiciais em virtude do exercício de sua liberdade de expressão.

 

O processo

Após o início da ação, o magistrado responsável pelo processo negou o pedido de tutela de urgência requerido por Kim Kataguiri, alegando que “a urgência alegada não chega a impor que não se possa aguardar a realização da audiência de conciliação”.

Na audiência em questão, em que se busca entrar em acordo a respeito dos pedidos feitos no processo, a proposta oferecida foi de que Flávia pagasse R$5 mil de indenização e se desculpasse publicamente. “Obviamente não foi aceito. Primeiro porque ela não teria esse dinheiro para pagar, segundo porque nós estávamos muito certos do nosso direito e muito convictos de que a ação seria julgada improcedente”, explica Lucas. 

 

A decisão

Dois meses após o início do processo, em junho de 2022, a sentença foi proferida. Nela, os pedidos feitos por Kim Kataguiri foram julgados improcedentes pelo juiz, que apontou que um deputado federal não é uma pessoa comum e sabe que está sujeito a críticas e manifestações contundentes por suas opiniões e ações.

“Entendo que, por mais duras que foram as palavras proferidas pela requerida em suas publicações, agiu assim amparada pela livre manifestação do pensamento, garantida pela Constituição Federal em seu artigo 5o, Inciso IV, sendo um direito fundamental de qualquer cidadão”, disse. 

“Um parlamentar que não consegue conviver com as críticas e comentários depreciativos à sua atuação não está preparado para exercer o seu mandato num país democrático onde as pessoas têm o direito à livre manifestação do pensamento”, complementou.

Após a decisão, o parlamentar interpôs recurso recorrendo da decisão, mas a sentença foi mantida.

 

Liberdade de expressão é direito

“As figuras públicas realmente devem ter um maior grau de tolerância, principalmente para receber críticas. Receber elogios a toda hora é muito fácil e simples. Até eu que não sou uma figura pública recebo muita crítica nas redes sociais, principalmente por causa da minha posição política”, pontua Flávia.

Para ela, esses processos que tentam impedir a livre manifestação do pensamento são um absurdo. E, apesar de tudo o que passou, aponta que essa ação não inibiu de forma alguma o jeito que pretende se expressar daqui pra frente. “A gente tem esse direito de expressar o que pensa”, comenta.

A diretora-executiva do Tornavoz, Charlene Nagae, aponta a importância de apoiar casos como o de Flávia: “considerando a grande comoção pública em torno desse episódio, chama a atenção que um deputado federal tenha processado a Flávia. Isso mostra que qualquer pessoa pode acabar silenciada por um processo judicial. Felizmente o Judiciário negou o pedido indenizatório. Figuras públicas devem suportar críticas, ainda que elas sejam muito duras”.