O desconforto de sermos plurais
Exercício da liberdade de expressão passa pelo fortalecimento da advocacia
Publicado originalmente em Folha

“Alguém também algo ouvira? Nada, não. Enquanto o Gorgulho estivera aos gritos, sim, que repercutiam, de tornavoz, nos contrafortes e paredões da montanha, perto, que para tanto são dos melhores aqueles lanços. Agora e antes, porém, tudo era quieto.”
‘O Recado do Morro’
João Guimarães Rosa

A constituição do Instituto Tornavoz se dá em razão do incômodo gerado com o paradoxo da comunicação que o país enfrenta: embora haja mais e mais espaço para a expressão da opinião, por novos e acessíveis meios, o risco envolvido no exercício desse direito é crescente e cruel.

Cada vez mais se tem notícia de artistas, jornalistas, professores e ativistas que se sentem pressionados a se calar ou, na melhor das hipóteses, a alterar seu discurso. Não bastasse, já foram identificados diversos casos de ajuizamento massivo de ações por conta da expressão de uma opinião, ou da divulgação de um fato considerado ofensivo.

A possibilidade dessa enxurrada de ações tornou-se uma ameaça real para aqueles que comumente expressam publicamente suas opiniões. O “projeto Crtl-X”, da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), identifica que mais de 5.500 processos judiciais foram movidos no país contra publicações de conteúdos diversos entre 2014 e 2021. Não à toa o Brasil vem caindo, nos últimos três anos, no ranking mantido pela ONG Repórteres sem Fronteiras, que classifica os países conforme a efetividade das garantias à liberdade de expressão.

A isso se acrescem as conhecidas dificuldades de se navegar o complexo, moroso e caro sistema jurídico brasileiro. Ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha, na última década, reiteradamente defendido a liberdade de expressão, os casos individuais terminam logo nos julgamentos de primeira instância, e poucos deles chegam às cortes superiores —e, nestes casos, apenas após muitos anos de processo, o que comumente acarreta custos inacessíveis para pessoas físicas e pequenas empresas de mídia.

Essa conjuntura fez clara a necessidade de se estruturar um projeto para apoio, perante os tribunais, daqueles que sofrem processos em razão do exercício da liberdade de expressão, especialmente dos que não têm como arcar com os custos de um processo ou que não sabem a quem recorrer.

A pretensão de fomentar um ambiente mais seguro para o exercício da liberdade de expressão passa, necessariamente, pelo fortalecimento da advocacia nessa área específica do direito, com a criação, em todo o país, de uma rede estruturada de profissionais especializados.

Ainda que o Brasil seja um país continental, advogadas e advogados com atuação na defesa da liberdade de expressão encontram-se concentrados —com honrosas exceções— nas grandes capitais, deixando um enorme vazio em áreas distantes dos centros urbanos, onde justamente os pequenos veículos de mídia têm atuação mais relevante e estão mais sujeitos ao assédio por meio de processos judiciais. Os noticiários locais, sobretudo os digitais, são importantíssimos para a democracia, principalmente em anos eleitorais, porque é por meio deles que a população toma conhecimento das realizações e dos desmandos de seus representantes.

Nesse contexto surgiu o Instituto Tornavoz, que se propõe a financiar a defesa judicial daqueles que sofrem processos em razão do exercício da liberdade de expressão, criando, ao mesmo tempo, uma rede de advogados(as) para atuação rápida e efetiva nesses casos.

O Tornavoz pretende que as mais diversas vozes possam ecoar e que a sociedade possa aprender a conviver com o desconforto de ser plural. Pretende ainda que a liberdade de expressão seja garantida a todos, não se sujeitando a pressões econômicas ou a qualquer forma de abuso ou assédio, como elemento essencial da cidadania.

Charlene Nagae, Clarissa Gross, Laura Tkacz, Mônica Galvão e Taís Gasparian
Fundadoras do Instituto Tornavoz

O desconforto de sermos plurais
Exercício da liberdade de expressão passa pelo fortalecimento da advocacia
Publicado originalmente em Folha
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“Alguém também algo ouvira? Nada, não. Enquanto o Gorgulho estivera aos gritos, sim, que repercutiam, de tornavoz, nos contrafortes e paredões da montanha, perto, que para tanto são dos melhores aqueles lanços. Agora e antes, porém, tudo era quieto.”
‘O Recado do Morro’
João Guimarães Rosa

A constituição do Instituto Tornavoz se dá em razão do incômodo gerado com o paradoxo da comunicação que o país enfrenta: embora haja mais e mais espaço para a expressão da opinião, por novos e acessíveis meios, o risco envolvido no exercício desse direito é crescente e cruel.

Cada vez mais se tem notícia de artistas, jornalistas, professores e ativistas que se sentem pressionados a se calar ou, na melhor das hipóteses, a alterar seu discurso. Não bastasse, já foram identificados diversos casos de ajuizamento massivo de ações por conta da expressão de uma opinião, ou da divulgação de um fato considerado ofensivo.

A possibilidade dessa enxurrada de ações tornou-se uma ameaça real para aqueles que comumente expressam publicamente suas opiniões. O “projeto Crtl-X”, da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), identifica que mais de 5.500 processos judiciais foram movidos no país contra publicações de conteúdos diversos entre 2014 e 2021. Não à toa o Brasil vem caindo, nos últimos três anos, no ranking mantido pela ONG Repórteres sem Fronteiras, que classifica os países conforme a efetividade das garantias à liberdade de expressão.

A isso se acrescem as conhecidas dificuldades de se navegar o complexo, moroso e caro sistema jurídico brasileiro. Ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha, na última década, reiteradamente defendido a liberdade de expressão, os casos individuais terminam logo nos julgamentos de primeira instância, e poucos deles chegam às cortes superiores —e, nestes casos, apenas após muitos anos de processo, o que comumente acarreta custos inacessíveis para pessoas físicas e pequenas empresas de mídia.

Essa conjuntura fez clara a necessidade de se estruturar um projeto para apoio, perante os tribunais, daqueles que sofrem processos em razão do exercício da liberdade de expressão, especialmente dos que não têm como arcar com os custos de um processo ou que não sabem a quem recorrer.

A pretensão de fomentar um ambiente mais seguro para o exercício da liberdade de expressão passa, necessariamente, pelo fortalecimento da advocacia nessa área específica do direito, com a criação, em todo o país, de uma rede estruturada de profissionais especializados.

Ainda que o Brasil seja um país continental, advogadas e advogados com atuação na defesa da liberdade de expressão encontram-se concentrados —com honrosas exceções— nas grandes capitais, deixando um enorme vazio em áreas distantes dos centros urbanos, onde justamente os pequenos veículos de mídia têm atuação mais relevante e estão mais sujeitos ao assédio por meio de processos judiciais. Os noticiários locais, sobretudo os digitais, são importantíssimos para a democracia, principalmente em anos eleitorais, porque é por meio deles que a população toma conhecimento das realizações e dos desmandos de seus representantes.

Nesse contexto surgiu o Instituto Tornavoz, que se propõe a financiar a defesa judicial daqueles que sofrem processos em razão do exercício da liberdade de expressão, criando, ao mesmo tempo, uma rede de advogados(as) para atuação rápida e efetiva nesses casos.

O Tornavoz pretende que as mais diversas vozes possam ecoar e que a sociedade possa aprender a conviver com o desconforto de ser plural. Pretende ainda que a liberdade de expressão seja garantida a todos, não se sujeitando a pressões econômicas ou a qualquer forma de abuso ou assédio, como elemento essencial da cidadania.

Charlene Nagae, Clarissa Gross, Laura Tkacz, Mônica Galvão e Taís Gasparian
Fundadoras do Instituto Tornavoz